Entrevista Ismaïl Bahri e Benjamin Seroussi
Catálogo da exposição Instrumentos
São Paulo, Brasil
Maio de 2018
Link para a exposição Instrumentos
Por ocasião da exposição Instrumentos, convidei o franco-brasileiro Benjamin Seroussi para uma conversa com o artista franco-tunisiano Ismaïl Bahri. Benjamin tem um notável pensamento livre e um posicionamento muito claro. É gestor cultural e curador, diretor do vibrante Instituto Cultural Israelita Brasileiro, conhecido como Casa do Povo – vizinho ao Espaço Cultural Porto Seguro –, e é representante da Pro Helvetia na América Latina. A ideia era convidar um curador brasileiro com trânsito na França, onde Ismaïl reside, para dialogar com a produção do artista, de um ponto de vista que fosse capaz de estabelecer critérios de aproximação com o contexto brasileiro e latino-americano. No entanto, para minha enorme surpresa, o pai de Benjamin é tunisiano e por conta disso, ele frequentou muito Túnis na infância. A partir desse elo comum, a conversa caminhou por lugares inesperados e abriu caminhos que vão além de qualquer especificidade local, seja da capital da Tunísia, seja de São Paulo ou de Paris.
Rodrigo Villela
Benjamin Seroussi : Fiquei instigado quando o Rodrigo disse que pensava que eu poderia falar do seu trabalho de um modo interessante e fazer perguntas em relação ao seu modo de trabalhar… Mas é verdade também que – e a gente vai retomar esse assunto depois –, em relação à posição artística com que você costuma trabalhar, eu diria que é algo surpreendente. E imagino que a gente vá retomar isso ao longo da nossa conversa, talvez ligado ao fato de que trabalho com uma produção muitas vezes bastante local da América do Sul e que responde a um contexto tenso, diferente. Vou contar um pouco porque estou curioso para saber o que você pensa a esse respeito, mas gostaria de chegar nisso pouco a pouco. De início, queria fazer algumas perguntas mais voltadas à sua forma de vida, porque, quando a gente vê o seu trabalho, tem uma espécie de depuração da forma sem que seja exatamente formal. Fiquei curioso para saber como você trabalha, uma questão bastante concreta sobre o seu fazer.
Ismaïl Bahri : É uma questão de que gosto bastante. Como trabalho… De partida, muitas vezes tenho a sensação, e imagino não ser o único, de não trabalhar – sem me culpar muito por isso. No fim, me vejo fazendo várias coisas. Acho que isso se deve ao fato de que não trabalho tanto a partir de roteiros, estratégias ou projeções e, como disse, não tenho a impressão de ter ideias a serem aplicadas, mas, muitas vezes, isso vem de encontros, do que as coisas vão me levar a fazer, de certa forma. Uma palavra pescada aqui ou ali, encontrar alguém, um objeto manipulado. Pode também ser algo com que fico obcecado num determinado momento e que pode, por exemplo, me habitar por duas semanas e que, no fim, esse objeto vai me levar à experiência de um gesto ou… Não sei, pode ser qualquer coisa. Muitas vezes são encontros, é um trabalho um tanto míope, uma miopia que me dá a sensação de enxergar só o que está a poucos centímetros de mim, e acredito que aquilo que tem mais ou menos a mesma escala da minha vida e do meu corpo ou do corpo dos outros. Quando digo que não há projeção, refiro-me, por exemplo, às situações em que me perguntam o que vou fazer daqui a dois meses. Fico muito incomodado, não sei o que dizer, mesmo que haja coisas nas quais eu esteja trabalhando no momento em questão. Então é isso, um modo um pouco míope, bastante ligado às coisas que acontecem, às coisas que estão por vir, só que quase imediatamente. Com frequência isso faz com que eu manipule ou experição que está aqui, e que esteve no Jeu de Paume antes, foi construída de modo bastante consciente… Quer dizer, não sei se consciente, mas de fato como algo bastante agudo e claro. E fiz isso de propósito, no sentido de que eu tinha vontade de fazer uma exposição que fosse plana e calma… Bem, não sei se calma, mas, de todo modo, extremamente lenta, como um mar parado, e que fosse agitada por determinados filmes e outras coisas – especialmente em Foyer ou outros filmes que trazem um pouco de agitação. Só que por contraste, de modo que alguns deles são tão parados, tão calmos que outros, por contraste, devolvem à vida, acabam jogando um pouco contra, em fricção. E agora, na verdade, e especialmente a exposição no Jeu de Paume, era uma intercalação perfeita, extremamente coerente, com um sentido, um desenvolvimento quase fotográfico, que começa por uma coisa e vai se desenvolvendo até que é solucionado ao final. Depois, e é sempre assim que acontece, quando você faz uma exposição, a exposição trabalha. Uma exposição não é feita para dar certo ou errado; geralmente, uma exposição é feita para que se trabalhe em alguma coisa, para trabalhar o trabalho…
BS : Para fazer você trabalhar.
IB : Sim, talvez. Aí isso faz com que você trabalhe, me faz trabalhar nisso agora. Eu me pergunto: que falhas são extraídas de tudo isso? Estou olhando para isso agora.
BS : Resulta um trabalho tão preciso que, no fim das contas, o que deixa você obcecado é a questão da sujeira, em todo caso, aquilo que resta…
IB : Não exatamente a sujeira, mas gosto bastante do termo "escória". A queda da bobina de filme, a falha, também é um termo bem empregado.
BS : Aquela imagem que não fica, mas que, para mim, é a mais bela. A gente fica imaginando aquela película que se acumula, esses pedaços de celuloide que são cortados e depois é possível fazer filmes com essas falhas.
IB : Com certeza. Agora, por exemplo, estou preparando uma exposição com o curador Guillaume Désanges,* e não faço a menor ideia do que estou fazendo.
BS : Isso é bom.
IB : Ah sim, mas, por outro lado, uma das referências que tenho é de dar valor ao momento de maravilhamento. Quando se trabalha, de repente há algo que salta aos olhos, algo que você guarda sem saber ao certo para que serve, sem nenhuma importância, mas guarda e, num desses momentos de maravilhamento, acontece uma espécie de queda. A gente falou sobre Túnis há pouco, e quando estive na praia de Raoued…
BS : Uma bela praia.
IB : Aonde ia quando criança. E [nessa vez que mencionei na conversa] trazia comigo um rolo grande de fita adesiva quando, de repente, comecei a medir essa praia, que é um pouco um afeto, e daí me dei conta… Tinha medido essa praia. Ao voltar para casa, fui assistir ao que tinha filmado, e que não valia grande coisa; não estava percebendo, mas tinha essa fita cheia de areia, jogada no chão, e seria possível dizer justamente uma queda de bobina, mas com o grão de areia que se tornou como um grão de filme, algo assim. Então, essa medição captou alguma coisa desse lugar – eis um exemplo.
BS : Você fala em revelação, e é possível encontrar termos fotográficos e cinematográficos o tempo todo em suas palavras, mas quando você chega nessa questão do gesto e do objeto, sobre o filme e esses objetos fílmicos… Na medida em que seus filmes se concentram em gestos, e diria mais, os títulos costumam ser ou lugares ou gestos, me parece.
IB : Por que lugares?
BS : Você tem determinados lugares. O Foyer, por exemplo, é um lugar.
IB : Sim, um certo tipo de lugar.
BS : O filme é um lugar.
IB : Sim, por que não? Mas por quê?
BS : O filme é um lugar.
IB : É um objeto.
BS : Pode também ser um objeto, mas, por outro lado, tenho sempre a impressão de ver o avesso, as dobras… Acabamos ouvindo esses gestos em determinados títulos que invocam outros títulos e outros gestos, e, por isso, gostaria de saber em que medida – e você falou da fita adesiva, algo que me interessa ainda mais – o trabalho se desenvolve na performance. Ou você considera o vídeo como performance…? Pode-se dizer que você trabalha no meio das artes visuais e se abordássemos essa questão... Aliás, há referências a [Robert] Bresson, Guillaume [Désanges] e François [Piron] na entrevista que fizeram com você, e é verdade que isso faz a gente pensar nos batedores de carteira que usam os dedos para roubar, em todos esses gestos repetidos. O Bresson também era obcecado por isso; não estou aqui te julgando, não faria essa pergunta sobre performance para o Bresson, mas como você circula nesse universo, queria saber se você trabalha em torno da performance ou não, de forma alguma? Esses restos de objetos, e não os restos de objetos filmados, não as falhas de imagens, mas como essa da fita adesiva, são ações que te interessam e ações que você repetiria, ou o vídeo seria de fato o lugar de registro?
IB : Francamente, são questões que me ultrapassam. Não me pergunto esse tipo de coisa quando trabalho e, no mais, a performance… O negócio é que acredito que esses gestos estão inscritos de tal forma na vida. E por que digo isso? O que me leva a medir uma praia, por exemplo, é o fato de eu ter vontade de ir até lá, na verdade. E que existe um objeto, e um lugar, um vínculo é possível, você tenta e é isso. A questão da performance é algo com que tenho problemas. Não é a primeira vez que me perguntam isso toda vez me vejo meio encurralado. Se compararmos, por exemplo, com o trabalho de Marie Cool e Fabio Balducci, você sabe de quem é?
BS : Mahléh [significa “Maravilhoso” em árabe]
IB : Isso! Eles fazem de fato performance ao vivo. Obviamente existe algo de performativo quando atravesso a cidade de Túnis procurando por…
BS : Com um copo de tinta.
IB Onde o filme, o fato de filmar, é o corpo que filma.
BS : O filme é você.
IB : Sim, claro. Existe, de fato, a ideia do corpo que filma, do corpo que vira câmera, da câmera que é preenchida com um corpo, esse tipo de coisa. Nesse sentido, sim, há isso, mas o que é importante no uso que faço do vídeo é que, às vezes, a câmera acompanha a experiência. Quer dizer, o fato de experimentar um gesto é algo que, em minha obra, é feito muitas vezes a partir de uma maneira de vê- -lo, ou seja, estou fazendo e, ao mesmo tempo, tomo distância e observo, e as duas coisas são tomadas uma pela outra. Para mim, dois vídeos que são bastante pungentes sob esse ponto de vista são, Orientações [Orientation] e Foyer, porque são dois vídeos em que a experiência que acontece e o filme que está sendo feito estão procurando um ao outro. Aquilo que está sendo capturado é aquilo que se captura, de certa forma, algo por aí. Assim, há a questão do performativo, o trabalho com o copo; se tem algo de performativo em Orientações, isso, passa pelo intermédio do gesto que está sendo filmado.
BS : Acho que o que fica claro quando vemos os filmes que estão na exposição é que, obviamente, não são registros de uma performance, mas filmes, e isso é bastante claro. Nesse sentido, a câmera, sem dúvida, participa dessa performance, podemos dizer que ela é um agente. Fora isso, algo que considero interessante quando você fala de seu trabalho e que vemos em determinados filmes, é que há muita coisa que é feita pelas próprias coisas.
IB : Ou que as coisas fazem acontecer.
BS : Isso. E a câmera também é uma coisa. É um tanto inseparável. Não é uma questão que tenta reduzir um filme no qual você faz um gesto a um registro desse gesto, está mais para uma questão que me faz pensar em que medida outras inscrições desse gesto seriam possíveis. Particularmente, quando vemos a folha que queima, um jogo quase infantil, a primeira vontade que se tem é de sair e repetir por conta própria. Isso me leva a pensar num tipo de experiência-procedimento, como se você fosse em direção a esse tipo de escrita, porque o seu trabalho me parece também um tipo de escrita… Quando falei em performance era menos no sentido de uma ação sem registro e mais no sentido de uma ação que passa pelo escrito.
IB : Entendi. Se tomarmos, por exemplo, Cool e Balducci, eles repetem. É algo que se repete infinitamente e que pode ser performado por outros, por qualquer um, por pessoas formadas para isso. Tenho a sensação de que se algo é feito para ser repetido, aquilo que vai compor o trabalho vai ser um momento eventual que não pode ser produzido. Vai ser, por exemplo, na folha que queima. Foram três meses de trabalho para chegar naquele momento, que só consegui atingir uma única vez. Ou seja, é um trabalho de precisão, de repetição rumo à precisão, com algo extremamente frágil que, se acontece uma vez, vira um acontecimento, mas que não vai se repetir. Como aquela bandeira na praia, foi aquele momento. Por outro lado, o copo tem um aspecto muito mais performativo, ou o gesto de cobrir a imagem com um papel…
BS : Quando falei em escrita, queria voltar um pouco à forma de viver. Você escreve antes de filmar? Você escreve e desenha um plano ou pega a câmera e fica tentando repetir até que o acontecimento ocorra?
IB : Sim.
BS : Você se levanta de manhã, encontra o lugar onde vai filmar… Fico curioso com os os próprios gestos práticos que levam a produzir uma obra.
IB : Depende de cada uma. Em todo caso, o que é certo, retomando aqui a miopia, é que geralmente tenho uma intuição, alguma coisa que me instiga, e vou em direção a isso. Em Foyer, por exemplo, o movimento intuitivo era de ir em direção à luz, de ir em direção à rua, em Túnis. De ir à Tunísia e ir até a rua em Túnis. Foi esse movimento que trouxe tudo, e não é um movimento consciente. Depois, na verdade, o trabalho consiste em estabelecer o quadro da experiência. É isso. Sobre um tripé imóvel, usando tal câmera, que formato de folha… Preciso de tal movimento do vento, tal tipo de luz e depois vejo. O que acontece muitas vezes é que leio enquanto trabalho. Na verdade, quando algo é ativado, vou ler. Mas não leio tanto para entender, e sim para apanhar palavras. Também escrevo, tenho vários cadernos em que coloco as palavras, porque às vezes as palavras me ajudam a ativar coisas, a ser reativo e a me concentrar um pouco.
BS : Mas essas palavras e essas leituras também são quedas?
IB : Um pouco, sim. Não quer dizer que sirvam para produzir textos, são momentos meio parecidos com acupuntura, em que às vezes você precisa ativar uma determinada zona sem saber muito bem por que, e tem necessidade de passar por uma conversa – as conversas são muito importantes para mim. Tal leitura ou tal palavra que vira uma obsessão… Neste momento é a “escória”, sem saber ao certo por quê.
BS : Sim, é uma palavra curiosa.
IB : Estava conversando com um amigo, ele usou essa palavra e, desde então, ela vem me fisgando, já faz três semanas. Ao mesmo tempo, isso me fez ver outras coisas, ir buscar outras coisas me dizendo: “Olha só, tem algo aí”. Mas não quero ficar fascinado por essa palavra porque a considero bonita ou coisa assim, é só que, num dado momento, reconheço alguma coisa ali. Como me acontece às vezes, por exemplo, de reconhecer algo num objeto ou num gesto. Tem, de fato, esse princípio de reconhecimento que é bastante importante. Às vezes, na vida, a gente passa dias sem reconhecer nada e, sem saber porque, às vezes alguma coisa salta da banalidade plana do nosso entorno e a gente acaba reconhecendo algo. Muitas vezes são os próprios encontros. Não quer dizer exatamente que você reconheça algo de fato, mas você sente que reconhece algo, que alguma coisa lhe diz respeito, e aí essa coisa passa a ser considerável. Você passa a considerá-la. Por exemplo, este copo aqui: não tinha reparado nele antes e, de repente, passo a levá-lo em consideração, e isso me ajuda. Sem entender por que, na verdade. Em todo caso, acompanhar esse primeiro salto, esse primeiro espanto.
BS : Eu falei um pouco antes para entrar mais no seu trabalho, mas algo que me interessa também e que me surpreendeu naquilo que vi é a ausência de rosto. Gostaria que você comentasse um pouco a esse respeito, mesmo que isso às vezes apareça como subtítulo ou outra coisa. Um dos vídeos que vi, o do fio talvez, em que você usa um rosto que aparece.
IB : Bem: o rosto. Por que não tem rosto?
BS : Não sei, talvez seja uma pergunta que não faz muito sentido para você, mas é curioso.
IB : Não me pergunto esse tipo de coisa, mas já notei isso.
BS : Também notei!
IB : Talvez porque o rosto se fixa demais. Um rosto se fixa. E talvez a questão da silhueta do personagem ou da pessoa ajuda a neutralizar algo que talvez seja muito dirigido. São hipóteses. Por exemplo, retomando Foyer, é algo que se relaciona ao fato de fixar e levar a um cara a cara, o rosto leva a um cara a cara. Quanto a Foyer, o que me interessa é ver como a câmera, que tem essa folha diante dela… Nesse filme, a câmera não tem mais um cara a cara do real, daquilo que ela filma, ela não tem mais essa relação cara a cara, que é algo próprio da câmera. Ao colocar essa folha, a câmera se torna um instrumento que registra as variações energéticas. Uma variação de luz, de corrente de ar, uma voz que chega… É isso, não tem mais o cara a cara, é a energia que conta. Talvez, neste instante, não me sinta apto, ou incapaz de gerir o cara a cara com um rosto. Pode ser algo que ainda esteja por progredir na cena, um dia posso chegar lá. Em Foyer, Nesse filme, e não fiz isso de propósito, esse filme me botou em ordem quando eu captei aquilo que vinha sendo tramado. Porque havia se tornado um meio de filmar a Tunísia, um país extremamente afetivo para mim – estive por lá, só que não conseguia fazer um cara a cara. O que você quer que eu enquadre? O que posso levar daqui? É demais da conta, não é possível, sou incapaz. E o salto que se operou foi quando me dei conta de que essa incapacidade se solucionou na forma de uma incompletude, na verdade. Existe o fato de colocar essa folha em branco, o que talvez tenha aberto espaço para essa energia aos outros para fazer um filme, de colocar uma voz, de dizer algo que eu seria incapaz de dizer, de acolher uma língua que perdi, palavras que perdi. Uma relação com o real que me comove, mas que perdi. E talvez porque eu não seja capaz, por ainda ter algum tipo de cara a cara. O rosto faz parte disso. Mas não só o rosto, muita coisa passa por aí.
BS : É verdade que, em Foyer, não há o rosto, mas há uma voz. E um belíssimo trabalho entre o campo e o quadro dessas duas coisas. Acho que isso cria um pouco essa impressão de pegar essa energia, ou seja, ao ouvir tudo aquilo que você não filma, a gente acaba vendo muito mais. Tomando como exemplo o sistema que a gente tem aqui, justamente, é uma espécie de frontalidade que você pretende mostrar, mas que não mostra grande coisa, que não mostra uma certa parte do nosso corpo, que não mostra que fomos aos Correios antes, que não mostra essa discussão que a gente poderia ter tido, que atravessa aquilo de que estamos falando agora. E o que é interessante no seu trabalho é que existe uma verdadeira relação com o véu; a tela não mostra, mas esconde. O desvelamento acontece sempre por meio de um velamento no meio do caminho. Você esconde para poder ver.
IB : Sim.
BS : E é curioso porque não se trata de uma subtração, mas de uma adição. Pensando em determinadas coisas sobre o seu trabalho, muitas vezes a ideia de pureza, de simplicidade retorna, mas tenho a impressão de que, ao criar um dispositivo, você acrescenta algo, e é principalmente esse acréscimo que lhe permite chegar a uma ideia pura, por assim dizer, mas que é resultado de uma não experiência para ver melhor. E, além do mais, a experiência… Era isso que eu ia dizendo, que pensava ser mais performance do que experiência, mas a experiência talvez caiba melhor. Quando ouço você falando sobre o seu trabalho, dá para dizer que é quase o trabalho de um cientista, de ficar repetindo a mesma coisa, ir em busca desse outro lado, descobrir uma coisa quando você estava procurando outra… Não sei se já fizeram essa comparação, essa relação com a experiência científica, mas queria saber se você lê literatura científica ou se a ciência é uma presença na sua formação.
IB : Não, nem um pouco. Na verdade, o que me interessa em relação à experiência é a questão do afeto, ou seja, como você afeta algo a partir da experiência e dentro dela, e como você se deixa afetar por ela, algo que acontece muito raramente. O que me interessa é a comparação entre a experiência “en boîte” – [sirenes passando] é a guerra?
BS : Esse barulho? É porque são seis horas. Às seis da tarde, o jornal Folha de S.Paulo começa a imprimir os jornais.
IB : É magnífico!
BS : Mas hoje eles não fazem mais isso, então é só um barulho que não anuncia nada, porque eles não imprimem mais no centro da cidade. Esse barulho que a gente ouve é a sirene que coloca em funcionamento as grandes máquinas de impressão do jornal, que fica a poucas ruas daqui.
IB : Então quer dizer que o amanhã está escrito…
BS : Encerrou o expediente, acabou. Podem largar suas canetas. Mas o barulho não significa mais nada, ele só anuncia algo que já desapareceu.
IB : É engraçado. Mas eu ia falando… Existe a experiência “dentro da caixa”, que traz a ideia da câmara escura, da experiência que a gente circunscreve, com a ideia de impedir que alguém seja afetado pelo entorno, pelo contexto. E a outra experiência… não sei se você entende o que estou dizendo?
BS : Sim, sim.
IB : E a experiência que, ao contrário, vai ser posta em contato com aquilo que a cerca e que vai ser transformada por ela. E a maneira como o experimentador, para mensurar, vai também alterar, perturbar, afetar o elemento que está mensurando. Essas coisas me interessam bastante. Retomando Foyer e Orientation, é mesmo isso, ou seja, a experiência que se faz na rua vem sondar algo, mensurar uma energia, capturar palavras, mas, ao mesmo tempo, tudo isso acontece porque há uma perturbação do andamento das coisas.
BS : Isso a partir da experiência, isto é, como em Desenlace [Dénouement ] ou, ao contrário, você cria…
IB : Sim, exatamente, como em Desenlace que, para mim, é um filme… Algo muito importante de se dizer, na minha opinião, aquilo que constitui para mim os melhores trabalhos são os filmes ou trabalhos que eu faço sem entender. E quando fiz Desenlace, eu não entendia nada. O exemplo desse filme foi que aconteceu uma anedota, é engraçado, uma discussão onde alguém me descreve um filme e assim eu entendo o desenlace, e aí entendi. Voltei para casa pensando que aquilo era um negócio incrível, fui procurar na internet e só então me dei conta de que tinha entendido tudo errado, que não tinha nada a ver, e aí fiz o filme. Mas eu senti que havia algo se elaborando dentro de mim, a ideia de mensurar, de ter um fio ligado à câmera e o modo como esse fio leva a experimentar esse vazio que separa a câmera da pessoa que está no campo. O que é esse vazio que sempre fascinou e que vai se tornar mensurado antes de ser visível? O que é interessante é que esse filme também dá um corpo ao objeto-câmera, que vai se tornar o espaço onde se está, obviamente. Essa experiência se dá de um modo mais intuitivo, mas, para tanto, é preciso enquadrar bem os elementos. Foi preciso algum tempo para que eu entendesse que tinha que ser neve, para encontrar o calibre do filme, pouco a pouco. Depois, tem alguma coisa que se forma, coisas que você encontra ou reconhece aos poucos. Você acaba reconhecendo que talvez a neve seja o suporte correto, enfim… Justamente porque isso começa a criar um enigma, o espaço inicial é pura luz digital e se transforma numa paisagem de neve. Se fosse, sei lá, uma rua, teria sido uma rua desde o princípio. Mas eu não fazia ideia disso, foi só ao experimentar que acabei entendendo.
BS : A gente sente esse tipo de esboço com o dispositivo ou protocolo experimental que se estabelece, e acaba surgindo uma espécie de forma, e não falo em forma no sentido formal, mas como um tipo de tentativa de tomar a essência de um gesto singular, algo por aí.
IB : Algo mais preciso, na verdade.
BS : Exato, é sempre mais preciso. Assim sendo, em que medida você espera algo de comum? E aqui algo que me interessa particularmente é sair dessa diferença entre o particular e o geral, e de pensar em singular e comum. Tenho a impressão de que você trabalha bastante nesse lugar, do singular e do comum, em vez de particular e geral, que levaria ao universal etc., ao passo que o singular e o comum me parecem um par mais interessante. E na discussão com François Piron e Guillaume Désanges, você também fala em universal.
IB Sim, mas acho que foi uma bobagem. Na verdade, é uma palavra que não entendo tanto assim.
BS : Abstrato demais? Grande demais?
IB : Não, o que é bonito é o fato de ela voltar à discussão e, no entanto, é uma palavra feita para ser amarrotada. É algo sujeito a controvérsias. Digamos que a palavra universal, porque eu acabei relendo a entrevista e achei isso um pouco bizarro, mas enfim, mais do que o universal… Aliás, não tem nada de universal, está mais para algo que já vimos e, na conversa com François e Guillaume, a ideia do déjà vu, de reconhecer alguma coisa, um certo inconsciente. Às vezes, determinados trabalhos convocam gestos ou coisas que temos a sensação de já ter visto e experimentado por conta própria, porque isso vai buscar um lugar ou uma coisa bastante arcaica e nativa, muito arcaica. Tenho essa impressão. Quanto a amarrotar e desamarrotar, é algo tão…
BS : Quando falo em forma, estou usando o termo de um sociólogo, o Georg Simmel, que fala dessas formas e, justamente, não fala em consequências econômicas e coisas assim, mas um sociólogo um pouco estranho que se interessa mais pela forma, como as coisas se constroem e como a gente encontra essas formas em vários níveis diferentes: no nível da discussão, da construção de um grupo, ou de um partido, mas que não é o fim a que isso serve, e sim como isso funciona. E o que eu vejo no trabalho é algo que talvez não seja universal, mas antropológico, da ordem do humano, e é por esse motivo que acabo voltando bastante à questão do texto, da poesia, porque acho que as palavras se tornam pesos e objetos, os gestos também. Acho que você está bastante dentro desse universo das coisas…
IB : E por que isso é bom?
BS : Porque tenho a impressão de que os títulos têm um papel importante, às vezes eles estão em fricção com o trabalho, não são exatamente nem ilustração nem um tipo de sinopse, é o menor dos poemas que você pode fazer. Você pega uma palavra e cola no filme, e não sei como acontece sua escolha dos títulos. Você podia chamá- -los de “Sem título”, mas não faz isso, você coloca títulos. E acho que os títulos criam algo no nível da percepção da obra para quem olha, porque a gente sempre vai colocar algumas etiquetas num determinado momento.
IB : Muitas vezes os títulos surgem no fim. Costuma vir no fim e acaba sendo bem complicado, muitas vezes porque vem alguém e diz: “Você precisa colocar um título”.
BS : Mas você pode escolher “Sem título”.
IB : Sim, mas mesmo assim, não é fácil.
BS : Eu realmente entendi assim, como um tipo de palavra que vem se acrescentar à obra.
IB : Tem também uma ideia de compressão. Acho que nesta exposição aqui tem uma energia que me interessava. Uma energia de compressão, ou de dilatação. Tem locais em que as coisas se comprimem, acho, que são precisas a tal ponto que chegam a comprimir, enquanto outros, como Foyer, são irradiantes. Obras irradiantes que, ao se concentrar num detalhe, atingem as coisas que estão no entorno. É a questão da circunferência, isto é, o detalhe e seus arredores talvez entrem numa espécie de jogo ou de fricção que me interessa. Como observar e ser preciso com um detalhe ao longo de meses até que, num determinado momento, existe um efeito de compressão que acaba dizendo algo sobre o entorno. Força centrípeta e centrífuga ao mesmo tempo, não sei. E a palavra é um trabalho que vai precisar um pouco mais alguma coisa.
BS : Isso dá peso.
IB : Sim, ela vai comprimir. Mas às vezes não dá certo também.
BS : Como em qual obra, por exemplo?
IB : Linha [Ligne ] não quer dizer nada. Foi alguém que me sugeriu essa palavra, eu achei ótimo. [risos] Agora, eu olho para isso e penso: Uma linha? O que isso quer dizer? Não sei. Mas gosto bastante disso porque esse trabalho que é tão preciso e tal, tem alguma coisa no título que dá errado. É engraçado, deu errado.
BS : Concordo com você. De todos os títulos, foi o que menos me pegou.
IB : Porque eu acho que deu errado.
BS : Agora vou mudar de assunto, que diz respeito a como uma obra assim circula e pode ser vista em outros lugares. Como te disse, eu trabalho num universo que, forçosamente, no Brasil, está ligado às questões políticas atuais, que é bastante engajado e, às vezes, até mesmo panfletário. Então, não sei se é o meu olhar – que é também alimentado por um olhar de cinéfilo –, ao assistir determinados filmes, especialmente Dénouement, que me fez pensar nesse filme incrível dos Irmãos Lumière em que uma parede é montada e desmontada. A gente encontra uma espécie de presença da câmera como gesto quase mágico nos seus filmes que a gente reconecta com a história do cinema. Ao mesmo tempo, eu via nos seus filmes algo bastante engajado. Não sei se é o meu olhar, mas engajado também com essas experiências, com um contexto, talvez até com gestos bastante duros. Quando você mensura a distância em Dénouement, eu vi um gesto bastante duro, porque é uma distância intransponível. Tem oxímoros como esse que se fazem presentes e que surgem na experiência, às vezes dessa maneira que deixa a gente surpreso com o final, ao mesmo tempo em que tem momentos bem engraçados, como o rosto, o toque do fio, é um tipo de aceleração do tempo. E quando eu ouço o seu trabalho, quando entro na sala, quando ouço as pessoas falar a respeito, fala-se muito de um certo silêncio, de meditação, mas eu fico pensando no grito, na verdade. O que mais escuto no seu trabalho é aquilo que grita e que pode ser um grito silencioso, claro, mas eu vejo aí mais esse tipo de marcação. Eu queria saber se isso ecoa para você ou se vem muito do contexto em que estou inserido..
IB : Sobre grito eu não sei, mas acho que é um trabalho extremamente inquieto. Num dado momento, vira uma obrigação. Talvez por serem trabalhos que são feitos num estado de extrema inquietude, e isso não é tão importante assim, mas percebo uma grande inquietude. Todo mundo fala da fragilidade do tremor, mas não é bem isso, tem algo de muito inquieto.
BS : Muito inquieto e muito duro, que está na precisão. Justamente, tem algo de lento, de não poder errar, de ter que apontar. Ao mesmo tempo, algo que quando é apontado, desaparece. E as vozes dos jovens tunisianos que conversam com você, do policial, do sujeito que te chama para fumar maconha etc., são vozes pungentes. E ouço nisso a palavra punho…
IB : Sim, em Foyer, por exemplo, é um trabalho que claramente, como Orientações, desnuda o meu maior complexo. E é isso que me impressiona, porque passei a vida toda tentando esconder que não falo árabe direito; a esconder que o lugar que é o mais pungente para mim, é também aquele que mais me escapa; que o espaço e as pessoas de que mais gosto são aqueles que me são mais distantes. E quando me percebi fazendo o filme, essa questão explodiu, na verdade. Aliás, isso inevitavelmente me obrigou a assumir algo de extremamente inquietante para mim e a me colocar numa postura em que fico desconfortável nessa circunstância. No mais, isso que você disse é completamente verdade, quer dizer, eu penso numa tentativa de apontar para um lugar que se esvai permanentemente. Tentar preparar tudo ou encontrar o momento em que alguma coisa, um elemento central vai ser localizado. Não sei, o local está um pouco por toda parte, mas isso se faz necessariamente na sensação de que isso sempre vai escapar, que nunca conseguiremos chegar lá de fato, que tem algo vão e que, mesmo assim, tem muitas formas que se destroem, que se decompõe, a aparição sempre se faz numa desaparição permanente, esse tipo de coisa.
BS : Sim, e isso talvez seja um pouco de otimismo, mas o que me tocou, mais do que aquilo que te escapa, é aquilo que escapa por si só. Mais do que as coisas que agem por conta própria, tem as coisas que escapam?
É esse lugar também onde você não se sente legítimo que me parece ser o mais rico, porque é a partir daí que se tem uma verdadeira posição de observador. Você está dentro e fora, encontrou o lugar perfeito para ser ilegítimo de maneira confortável.
IB : Por que confortável?
BS : Porque você encontrou um local. Um lugar que você pode habitar, onde pode conversar, escutar, deixar as pessoas questionarem, porque você as deixa falar, para deixar as vozes dos outros serem gravadas. Existe uma generosidade, como em Foyer, porque você dá voz ao outro. Ao mesmo tempo, eles dizem aquilo que você gostaria de dizer, tem esse jogo que é forte. De fato, é curioso quando eu falo em grito e em algo muito político, porque isso ecoa uma produção brasileira dos anos 1970, da época da ditadura militar. Fiquei achando isso. E que também é algo muito presente e que retorna na produção brasileira dos anos 1990 e 2000, que joga com as formas para criar situações que estabelecem pequenas instabilidades do lado de dentro. Por exemplo, tem uma obra muito bonita do Cildo Meireles que se chama Cruzeiro do Sul, que é um pequeno cubo que pode ser apresentado dentro de uma sala que é não sei quantas vezes o tamanho do cubo. Então, quando você entra, você não vê o cubo, só a sala vazia. Mas o cubo está ali, presente, e é o cubo que justifica a sala. Esse jogo de micro e macro é muito presente no seu trabalho e não sei se está ligado à situação macropolítica, ou a uma inquietude pessoal, ou talvez – e muitas vezes é esse o caso – a questões de subjetividade que também são ligadas a uma situação na qual você está, você vive, você habita, questões de identidade, de deslocamento… É como se você tentasse enganar ou driblar a censura. [Ismaïl ri] E como eu te dizia, a gente entende um pouco essa censura que você está tentando driblar, quer dizer, a melhor maneira de falar sobre ela, é driblando. Não sei se faz sentido para você esse tipo de reflexão que acaba aproximando o seu trabalho de uma questão que é cara ao Brasil neste momento com o golpe de Estado e tudo mais, mas que, no seu trabalho, nesse sentido, nesse gesto singular que é político de outra maneira, se você não quer dizer alguma coisa, tem outra coisa que se diz de maneira muito forte. Então, de que maneira você reconecta esses fatos, e de coisas que te tocam também, a gente falou da revolta na Tunísia, a gente poderia falar do que aconteceu em Paris, na França, com o Nuit Debout. São coisas que te afetam, porque está realmente no lugar do afeto, mais do que um lugar macropolítico, é um lugar micropolítico, é o afeto que age. Para você, isso é algo presente ou é mais inconsciente, algo que atravessa o trabalho?
IB : Não, é inconsciente. De verdade, não estou dizendo isso por… A questão do que me afeta é realmente importante. Isto é, eu começo a me dar conta, agora que já tenho uma certa quantidade de trabalhos que se acumula, de que tem alguma coisa da qual o trabalho se torna um tipo de condutor. O fato de trabalhar significa conduzir, acompanhar as energias, tornar visíveis determinadas coisas ou deixá-las se manifestarem por conta própria sem sequer se dar conta, e isso acontece da maneira como você descreveu, que acho que foi muito bem colocado. É algo que me toca. Não estou mais falando do meu trabalho, mas do que você disse. Se fosse o caso, serial genial, mas não sei. É por isso que eu disse há pouco que eu nunca sou tão – como dizer? – apegado ao apego. Eu nunca considero tanto um trabalho que fiz do que quando tenho a impressão de não tê-lo compreendido.
BS : Quando ele te escapa.
IB : Quando ele me escapa, quando tenho a impressão de ter de passar por ali para reconhecer alguma coisa, talvez. É por isso que a questão do reconhecimento é muito importante: você reconhece alguma coisa inconscientemente, você se deixa atravessar por essa coisa inconscientemente e de maneira bastante inquieta, é por isso que a inquietude está presente, são momentos extremamente desagradáveis. Até que, num determinado momento, quando você se libera de tudo isso porque você passa para outra coisa, você começa a captar, a ver que alguma coisa aconteceu. Às vezes.
BS : É por isso também que a referência ao Bresson me parece bastante bela e sutil quando penso em “Um condenado à morte escapou”. Seus filmes são um pouco como condenados à morte que escapam.
IB : Não sei. Mas, por exemplo, vários artistas costumam me dizer: “Ah, quando eu termino um trabalho, nunca mais olho para aquilo”. Isso é algo que eu nunca entendi, porque é depois que eu vejo. E quando digo depois, estou falando em três, quatro anos, dez anos depois. Porque o trabalho continua trabalhando depois. Não existe isso de uma peça acabada, não tem nada a ver, é um problema.
BS : É um ser no mundo, ele te acompanha.
IB : Ele me acompanha depois. Aqui, por exemplo, conversei com alguns brasileiros sobre certos trabalhos e isso me despertou outras coisas, hoje estou conversando com você, o que me torna sensível a outras coisas, enfim… Além disso, outra coisa que é importante para mim é que, por exemplo, o fato de acompanhar e de tomar conta de algo que foi feito é também uma maneira de reativar outras coisas mais para frente, é assim. Não existe isso de acabar uma coisa e passar para a próxima, nunca entendi isso.
BS : Agora uma pergunta… Passando para a parte da entrevista…Tem alguma coisa daqui que você gostaria de saber, algo que te intriga, que te interessa, algo que você gostaria de falar? Coisas que você tenha visto aqui e das quais gostaria de falar?
IB : Bom, o que me acerta em cheio… Para contextualizar, como te disse, eu vim para a exposição, então não tenho a sensação de ter de fato visto, só estou numa cidade. Eu topei vir agora para depois voltar daqui a um mês para ter tempo de ver. Mas o que me atinge é a fricção extremamente violenta entre os mundos, os corpos, as economias, as maneiras de viver. É algo que já observei na Colômbia e foi o que pude ver daqui. É algo que me salta aos olhos o tempo todo. É pungente, mas o que vi são só indícios, não sei. Ainda não entendi nada da cidade.
BS : Não se preocupe. É uma cidade onde a gente não entende muita coisa. A gente se apega.
IB : Por exemplo, como dizer… Não encontrei muito do aspecto… Isso é muito delicado. Mas na Tunísia, por exemplo, tem grandes disparidades sociais e diferenças, mas a separação é menos flagrante. Ela começa a ser um pouco mais, infelizmente. Não sei, mas aqui, por exemplo, a gente está num prédio, um centro de arte, não sei como chamam isso, mas a gente vive num outro mundo. Não posso deixar de dizer que, para que uma exposição seja feita, quanto custa isso? Todos esses projetores, todas essas luzes…
BS : Isso tem que perguntar para o Rodrigo.
IB : O número não é importante, é o contraste, na verdade. Mas inevitavelmente, quando você sai da exposição, tem essa coisa que me salta aos olhos, não é normal. É ainda mais contundente, acho, do que outros lugares onde já expus.
BS : Mas como a gente conversou antes, a Tunísia teve sua identidade reconstruída depois da independência em torno de um desejo de homogeneidade.
IB : Sim.
BS : E isso ainda está presente, de certa forma. Aqui, é verdade que, pelo contrário, é quase uma sociedade de castas, com uma diferença social tão forte e marcada. Mas acho que esse é o aspecto curioso e interessante de ver o seu trabalho aqui. Tenho a impressão de que, do mesmo modo que aquilo que não é mostrado me leva a ver outra coisa, naquilo que não é dito a gente pode ouvir essa tensão, esses gritos.
IB Eu não entendo. Você não é o único a me dizer isso, mas eu ainda não entendi.
BS : No seu trabalho?
IB : Você não é o primeiro a dizer que é particular ver o meu trabalho aqui neste contexto… Ainda não entendi.
BS : É como se a gente estivesse, neste momento, numa situação… Eu diria que aquilo que faz a vida como tal perdeu quase todo seu valor. Há massacres que acontecem regularmente e a vida continua, só que sem vida. E no seu trabalho, a primeira obra, Linha, com a gota d’água, é como se ela conseguisse apontar para a importância da respiração, dos batimentos, do ser presente, da fragilidade, mas com essa precisão de que falamos há pouco. Em seguida, me parece que muitas outras obras passam por esse tipo de cuidado.
IB : Sim, é isso.
BS : Você cuida. Você presta atenção na presença do outro, e isso para nós é um contraste muito forte em relação ao momento em que estamos, somos muito mais marcados pelo contrário, pela diferença. É um momento, como se diz aqui, de aterrar, de voltar à terra. Isso talvez nos aproxime do outro, mas de uma maneira muito distinta do que um brasileiro faria hoje, a meu ver. Em termos de produção local, talvez seja uma obra que poderia estar presente num momento de censura.
IB : É mesmo?
BS : Aquilo que eu dizia de apontar algo que não é nomeável, e a gente sente isso no seu trabalho. Um outro aspecto que é interessante… Para além da questão do cuidado, que é um primeiro aspecto que valoriza a questão da pulsão vital, da presença do corpo. E mesmo um corpo sem rosto é um corpo vivo, que respira, que pulsa. Eu diria que você humaniza até os objetos – talvez você desumanize os seres humanos e humanize os objetos. No fim, a gente sai ganhando. A segunda coisa que eu apontaria gira em torno daquilo que não pode ser dito, do não dito, do ausente. E estamos numa situação política tão tensa que a gente acaba restabelecendo um vínculo com a época da ditadura, da censura, do silêncio. Assim, a gente reconhece talvez uma produção brasileira mais distante, eu falei no Cildo Meireles, mas é possível retomar outras obras mui - to diferentes, como a da Letícia Ramos, que escreve o no - me do país no próprio pé com um fio… Acabamos encon - trando gestos que tentam criar uma dor que não pode ser dita. Talvez isso não nos atinja particularmente neste mo - mento porque isso não seria feito desse jeito mas ao ver isso, encontra eco uma produção local que também faz sentido. Acho que esse seria um segundo ponto, primeiro a questão do cuidado e depois a questão do silêncio. Não sei se estou finalizando muito rápido.
IB : Não, não, isso me interessa muito. Porque é verdade que, quando me convidaram para fazer a exposição, isso foi colocado na discussão.
BS : O quê?
IB : Não me disseram desse jeito, mas disseram que era im - portante para eles. Eu não entendi o porquê, até fiquei achando que era uma questão de educação. Não sei, po - de até ser o caso. Disseram que era importante atualmen - te e eu não conseguia entender, só achei que tudo bem. Mas talvez você esteja colocando em palavras algo que voltou várias vezes sem que eu conseguisse entender.
BS : Agora a gente pode passear pela cidade um pouco.
IB : Podemos fazer isso agora.
BS : Quero te apresentar alguns lugares.
[segue discussão sobre família, comida e várias conversas entremeadas]